O Volume
IV da Suma Teológica, que compreende as Questões 49 a 114 da Parte I,
apresenta uma síntese notável sobre o papel do mal, dos anjos, do
diabo, da criação espiritual e material, e da governação
divina no cosmos. Essa seção da obra de São Tomás de Aquino
constitui uma investigação filosófica e teológica profunda sobre a metafísica
da criação e da ação divina, integrando elementos da tradição cristã com o
pensamento aristotélico.
Questões 49–64: O Mal e a Criação Angélica
Tomás de
Aquino inicia essas questões com uma abordagem clássica do problema do mal. Ele
afirma que o mal não possui existência substancial, mas é uma privação do
bem – ou seja, o mal só pode ser entendido em relação a algo que deveria
possuir uma perfeição, mas não a tem. O mal não tem uma causa eficiente direta;
Deus, sendo sumamente bom, não pode causar o mal diretamente. Contudo, o mal
pode surgir acidentalmente, como resultado de uma permissão divina ao
livre-arbítrio das criaturas.
Q. 51–64: Anjos, sua Natureza e Hierarquia
A
teologia angélica desenvolvida por Tomás mostra-se altamente elaborada e
sistemática. Os anjos são seres puramente espirituais, criados por Deus
como inteligências puras, sem matéria. Eles são distintos entre si não por
espécie (como ocorre com os humanos), mas cada anjo é uma espécie única. São
Tomás discute a forma de conhecimento angélica, argumentando que os
anjos não aprendem por abstração, como os humanos, mas recebem infusões diretas
da verdade por Deus.
Ele
também descreve a hierarquia angelical com base na tradição de
Pseudo-Dionísio Areopagita, dividindo os anjos em três tríades: Serafins,
Querubins, Tronos; Dominações, Virtudes, Potestades; Principados, Arcanjos e
Anjos. Cada ordem angelical tem funções distintas na mediação entre Deus e o
mundo.
Questões 63–64: A Queda dos Anjos e a Rebelião de Lúcifer
Tomás
analisa a origem do mal nos seres angélicos, notando que alguns anjos,
liderados por Lúcifer, caíram por um pecado de orgulho, ao desejarem ser
como Deus sem depender d'Ele. Ele sustenta que a queda se deu de maneira
irrevogável por causa da natureza espiritual dos anjos: ao tomarem uma decisão,
fazem-no com conhecimento pleno e definitivo. Assim, os anjos maus se tornaram
os demônios, mas mantiveram sua natureza angélica – ou seja, continuam
sendo seres dotados de inteligência e vontade, embora pervertidos.
Questões 65–74: A Criação do Mundo e do Homem
Q. 65–66: A Criação em Geral
Aqui,
Tomás aborda a criação como um ato livre e soberano de Deus. Tudo que
existe fora de Deus foi criado ex nihilo (a partir do nada), e essa criação se
ordena a um bem maior. A criação não é um processo temporal, mas um ato único
de Deus. No entanto, o mundo teve um início no tempo, como revelado pela fé,
embora isso não possa ser demonstrado pela razão natural.
Q. 67–74: A Obra dos Seis Dias – O Hexaémeron
Seguindo
a ordem do Gênesis, Tomás interpreta os seis dias da criação não apenas como
eventos cronológicos, mas como expressões de uma ordem hierárquica do cosmos.
Cada etapa reflete um desenvolvimento progressivo da complexidade e da ordem:
da criação da luz à formação dos corpos celestes, da separação das águas à
produção da vida vegetal, animal e, finalmente, humana.
Ele
também trata dos elementos do mundo físico – luz, tempo, espaço, matéria – em
categorias filosóficas herdadas de Aristóteles, mas integradas na perspectiva
cristã da criação providente.
Questões 75–89: A Alma Humana, Suas Potências e
Operações
Essa é
uma das seções centrais de toda a Suma, pois nela Tomás desenvolve sua
antropologia filosófica e teológica.
Q. 75–76: A Substância da Alma
A alma
humana é entendida como a forma substancial do corpo humano, e, ao mesmo
tempo, uma substância espiritual capaz de existir separadamente após a
morte. Tomás reafirma a doutrina da unidade substancial do ser humano: corpo e
alma formam um único composto, embora a alma tenha imortalidade por sua
natureza espiritual.
Q. 77–83: As Potências da Alma
Tomás
classifica as potências da alma em três ordens: vegetativas (nutrição,
crescimento), sensitivas (sensação, movimento), e intelectivas (intelecto e
vontade). Ele dedica especial atenção ao intelecto, distinguindo entre o intelecto
agente (que abstrai as formas dos objetos) e o intelecto possível
(que as recebe).
Q. 84–89: O Conhecimento Intelectivo
Aqui,
Tomás discute como o ser humano conhece: partindo dos sentidos, abstraindo as
formas inteligíveis e processando-as pela razão. Diferente dos anjos, o
conhecimento humano é discursivo, progressivo e dependente do corpo.
Essa limitação torna a alma humana distinta das inteligências puras, ainda que
feita à imagem de Deus.
Questões 90–102: A Criação do Homem e Sua
Finalidade
Q. 90–92: A Criação do Homem
Tomás
reflete sobre a criação do homem segundo a imagem de Deus. O homem é dotado de
razão e livre-arbítrio, e sua alma é diretamente criada por Deus. A mulher,
criada a partir do homem, é interpretada como igual em natureza, mas com uma
diferenciação em função. Tomás sustenta a complementaridade dos sexos dentro de
uma ordem natural e teológica.
Q. 93: A Imagem de Deus
A imagem
divina no homem está na alma racional. Tomás distingue três formas dessa
imagem: essencial (pela racionalidade), habitual (pela graça) e perfeita (na
glória celestial). O homem foi criado com dons preternaturais – integridade,
imortalidade, ciência – perdidos com o pecado original.
Q. 94–102: O Estado Original e o Paraíso
Aqui,
Tomás trata do estado do homem antes da queda, sua justiça original, e os
atributos do Éden. O homem vivia em harmonia com Deus, com a natureza e consigo
mesmo. O Paraíso é visto não apenas como um lugar físico, mas também como um
estado de amizade com Deus e ordem natural. O pecado rompe essa ordem, mas a
redenção em Cristo restaura a dignidade humana.
Questões 103–114: A Governança Divina
Q. 103–109: A Providência e a Ação dos Anjos
A seção
final do volume aborda o modo como Deus governa o mundo. A providência
divina é o plano eterno pelo qual Deus dirige todas as coisas ao seu fim.
Os anjos participam dessa governação, mediando as ordens divinas, especialmente
nos movimentos das esferas celestes e nos acontecimentos humanos.
Tomás
reafirma que a providência não exclui o livre-arbítrio das criaturas. Pelo
contrário, ela o integra num plano maior. Assim, mesmo o mal, quando permitido,
serve a um bem superior, ainda que esse bem não seja imediatamente
compreensível para nós.
Q. 110–114: A Ação dos Anjos Bons e Maus no Mundo
Essas
últimas questões exploram os meios pelos quais os anjos e os demônios
influenciam o mundo material e espiritual. Os anjos bons iluminam, guiam e
protegem os homens, enquanto os anjos maus tentam levá-los à perdição. Tomás
analisa a possibilidade de interferência demoníaca nos fenômenos naturais,
sonhos, tentações e até mesmo possessões.
No
entanto, ele sempre ressalta a soberania de Deus: nenhuma ação angélica,
boa ou má, acontece fora da permissão divina. O poder do demônio é limitado, e
seu domínio sobre o mundo é temporário e subordinado à justiça e misericórdia
divinas.
O Governo Sábio de Deus
O Volume
IV da Suma Teológica é uma meditação filosófico-teológica grandiosa sobre a
criação, o mal, os anjos, a alma humana e a providência divina. São Tomás
combina rigor lógico com profunda fé, utilizando categorias aristotélicas para
esclarecer os mistérios da fé cristã. Seu projeto é sempre orientado para mostrar
como tudo, desde os anjos até a menor criatura, participa de uma ordem
universal cujo centro e fim é Deus.
Esta
seção da Suma é indispensável para entender a antropologia cristã, a teologia
dos anjos e demônios, e a cosmologia medieval. Ela oferece uma visão integrada
do universo, em que o bem e o mal, o espiritual e o material, a liberdade e a
providência estão em relação dinâmica sob o governo sábio de Deus.
🔹 Estrutura Geral (Q. 49–114)
Tema central: A criação divina,
a natureza do mal, os anjos bons e maus, a alma humana, o Paraíso e a
providência de Deus.
🔸
Parte 1 – O Mal e os Anjos (Q. 49–64)
✦ Q. 49–50 – O Mal
- O mal é ausência de bem,
não uma substância.
“O mal é a privação do bem que é devido.” (ST I, q.
49, a. 1)
- Deus não é causa do mal,
mas pode permitir que ele ocorra por razões superiores.
“Deus permite o mal para dele tirar um bem maior.”
(ST I, q. 49, a. 2)
✦ Q. 51–64 – Os Anjos e a Rebelião
- Os anjos são substâncias intelectuais puras,
sem matéria.
- Cada anjo é uma espécie única.
- Existem hierarquias angélicas:
Serafins, Querubins, Tronos etc.
“Em cada ordem, os mais altos iluminam os
inferiores.” (ST I, q. 107)
- A queda dos anjos ocorreu
por orgulho (pecado de querer ser igual a Deus).
“O primeiro pecado do diabo foi o desejo
desordenado de semelhança com Deus.” (ST I, q. 63, a. 3)
🔸
Parte 2 – A Criação do Mundo (Q. 65–74)
✦ Q. 65–66 – Origem da Criação
- Deus criou tudo do nada,
em um único ato de vontade.
“A criação é um efeito da vontade divina.” (ST I,
q. 65, a. 1)
✦ Q. 67–74 – O Hexaémeron (os
seis dias)
- Ordem da criação expressa a sabedoria
divina.
- O tempo é criado com o movimento dos corpos
celestes.
“A luz foi criada no primeiro dia como princípio
de toda a ordem natural.” (ST I, q. 67, a. 4)
🔸
Parte 3 – A Alma Humana (Q. 75–89)
✦ Q. 75–76 – Natureza da Alma
- A alma é forma substancial do corpo
e espírito
imortal.
“A alma humana é, por si, uma substância
incorruptível.” (ST I, q. 75, a. 6)
✦ Q. 77–83 – Potências da Alma
- Potências: vegetativas, sensitivas e
intelectivas.
- O intelecto agente e possível explicam a capacidade
humana de conhecer.
✦ Q. 84–89 – Conhecimento Humano
- Conhecimento vem pelos sentidos, depois
pela abstração intelectual.
“Nada há no intelecto que antes não tenha passado
pelos sentidos.” (ST I, q. 84, a. 6)
🔸
Parte 4 – A Criação do Homem (Q. 90–102)
✦ Q. 90–92 – Formação do Homem e
da Mulher
- O homem foi criado à imagem de Deus.
- A mulher foi criada a partir do homem, como auxiliadora.
“Não é bom que o homem esteja só.” (Gn 2,18
citado em ST I, q. 92, a. 1)
✦ Q. 93 – A Imagem de Deus no
Homem
- Imagem essencial (razão), habitual (graça) e
perfeita (glória).
“A imagem de Deus está mais perfeitamente nos que
estão em graça.” (ST I, q. 93, a. 4)
✦ Q. 94–102 – O Estado Original
e o Paraíso
- O homem no Paraíso possuía justiça
original, ciência infusa, imortalidade
relativa.
“O primeiro homem foi criado em estado de
justiça.” (ST I, q. 95, a. 1)
🔸
Parte 5 – A Governação Divina (Q. 103–114)
✦ Q. 103–109 – Providência e
Ordem Cósmica
- A providência é o plano eterno de Deus, que
conduz tudo ao bem.
“Deus move todas as coisas como causa primeira.”
(ST I, q. 103, a. 6)
- A ordem do universo é hierárquica,
com os anjos participando do governo divino.
✦ Q. 110–114 – Intervenção Angélica
e Demoníaca
- Os anjos bons agem para guiar os homens ao
bem.
- Os anjos maus (demônios) tentam afastar o
homem de Deus.
- Nenhum demônio pode agir sem permissão
divina.
“Mesmo os maus são ordenados pela providência
divina.” (ST I, q. 113, a. 6)
📌
Temas Centrais Transversais
1. Ordem
e Hierarquia
O universo inteiro tem estrutura hierárquica,
reflexo da sabedoria divina.
2. Imago
Dei
O homem é imagem de Deus por sua razão, liberdade
e capacidade de amar.
3. Providência
e Liberdade
A providência não nega o livre-arbítrio; Deus
coopera com a liberdade humana.
4. O
Mal como Permissão
O mal não tem essência própria: é tolerado para
que um bem maior surja.
🎯
Aplicações Práticas para o Estudo
● Para Filosofia e Teologia
- Fundamentos da antropologia cristã, visão
sobre alma, corpo, intelecto.
- Discussão clássica sobre liberdade,
mal e providência.
● Para Ética
- Origem do pecado, queda dos anjos e do
homem, e as consequências para a moralidade humana.
● Para Espiritualidade Cristã
- O papel dos anjos e demônios na vida
espiritual.
- A necessidade da graça para restaurar a imagem de Deus no homem. Lista de Resumos